Isto
Dizem que finjo ou minto
Tudo o que escrevo. Não
Eu simplesmente sinto
Com imaginação.
Não uso o coração
Tudo o que sonho ou passo ,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço.
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério é que não é.
Sentir? Sinta quem lê !
O assunto do poema "Isto", tal como o do poema "Autopsicografia" é a teoria da criação literária.Parece até que a afirmação "dizem que finjo ou minto tudo o que escrevo" é uma resposta a críticas nascidas de possíveis interpretações de "Autopsicografia".
O sujeito poético responde na primeira estrofe (primeira parte lógica) que o seu fingimento não é propriamente mentira, mas uma síntese rara (como se ele fosse um predestinado) da sensação e da imaginação.
Enquanto em "Autopsicografia o poeta distinguia entre sensação (dor sentida) e fingimento (dor imaginada), aqui simplesmente sente com imaginação. O poeta parece esquecer, neste poema, o ponto de partida que em "Autopsicografia" era a sensação (coração). Mas, o que realmente acontece, é que ele realiza (no acto de criação poética) a síntese da sensação com a imaginação, sobressaindo esta, porque intelectual, operada pela razão. O poeta não usa o coração porque lhe basta a imaginação, a qual surge como concentração do sensível e do intelectual.
Note-se que este poema foi publicado em l933, na revista Presença, enquanto o poema "Autopsicografia" tinha sido publicado, na mesma revista, menos de um ano antes, em Abril de l932.
Em "Autopsicografia", Pessoa fala na 3ª pessoa, dando a entender que a teoria exposta tem aplicação universal: é um processo verificável em todo o verdadeiro poeta. No poema "Isto", o poeta fala na lª pessoa,
não há nenhuma frase de carácter axiomático, de aplicação universal. Não será porque Pessoa se apresenta aqui como o poeta intelectual por excelência?
Passemos à segunda parte do texto, a qual constitui uma confirmação do conteúdo da primeira estrofe, baseada na experiência vivida do poeta. Todas as contingências da sua vida (“Tudo o que sonho ou passo, o que me falha ou finda”) são como um terraço sobre outra coisa, e essa coisa e que é linda. Essa coisa são os dados da imaginação, são a transfiguração artística operada pela inteligência/imaginação. Note-se a expressividade da comparação "como que um terraço", a simbolizar as aparências que escondem a realidade mais bela. Mas Pessoa não separa o terraço da beleza que ele esconde: as contingências da vida são como que um terraço com tudo o que ele esconde de mais belo. Parece então sugerir, o poeta, que nele a inteligência/imaginação, num único acto de síntese, abarca ao mesmo tempo todas as esperanças, os fracassos da sua vida e as belas realidades poéticas, a essência pura da poesia criada pelo fingimento.
Enquanto na "Autopsicografia" o poeta distinguia dois momentos (o da sensação e o da imaginação), aqui tudo se processa num só momento: as realidades belas subjacentes ao terraço (aparências) são vistas por ele, automática e simultaneamente.
É evidente que paira aqui a doutrina platónica da reminiscência: olhar para as aparências (coisas deste mundo) e ver imediatamente as realidades puras de um mundo mais alto. Constata-se aqui também a grande emoção (de natureza intelectual) que o poeta punha naquilo que ele considerava o fulcro, o âmago da poesia: essa coisa é que é linda.
Na terceira parte do poema, a jeito de conclusão, "Por isso", afirma que escreve "em meio do que não está ao pé". O que está ao pé são as sensações, é o mundo das aparências, o que não está ao pé é o mundo da inteligência, o mundo das realidades puras, da imaginação que transforma, que eleva as sensações ao nível da literatura, ao nível da poesia. A arte poética nasce da abstracção do mundo sensível. Só quando o poeta é do seu enleio (do coração), é que o milagre da poesia se pode dar. "sério do que não é", o poeta considera "sério" quem como ele é capaz de se abstrair do acidental para se concentrar no mundo das essências ( no mundo intelectual). Para Fernando Pessoa é aí que está a perfeição.
O poeta fecha o poema com uma interrogação retórica e uma exclamação de sentido irónico depreciativo : “Sentir?”, note-se como esta interrogação, em conjunto com a exclamação "Sinta quem lê?" é uma resposta irónica ao "Dizem que finjo ou minto" do príncipio do poema. O poeta não sente deixa isso para os que lêem, para quem brinca com o sensível, com o mundo das aparências. Para ele super-poeta, tudo se passa no mundo da inteligência-imaginação, no mundo das ausências.
Este verso apesar de parecer o fechamento de uma circunferência iniciada no terceiro verso, deixa margem à reflexão, a um dinamismo intelectivo que fica a desenvolver-se na mente do leitor.
Apesar de todo o vocabulário ser simples, conhecido dentro dos limites da norma surgem divergências de interpretações em certos passos do poema. É que certas palavras, embora de sentidos denotativos vulgaríssimos, carregam-se no contexto, de conotações imprevistas, originando a plurissignificação e as dúvida
Assim, o verso "Dizem que finjo ou minto" tem aqui o sentido que lhe atribuem os que dizem que falta à verdade, sentido depreciativo que corresponde ao uso popular verificável por exemplo na expressão pessoa fingida". Por isso, apressa-se a negar esse sentido ao fingimento: "Eu simplesmente sinto com imaginação". O fingimento do poeta é pois o trabalho mental que tudo transfigura, por meio da imaginação. A sua emoção está nessa transfiguração imaginativa onde floresce a poesia. Quando dice que não usa o coração, quer dizer que o centro, o fulcro, da grande poesia, não está nas sensações (no coração), mas na inteligência (imaginação).
A metáfora (comparação) centrada em terraço é admiravelmente expressiva da fronteira, dificil de ultrapassar, entre o mundo sensível e o mundo intelectual. O verdadeiro poeta é o priveligiado que é capaz de ultrapassar essa fronteira, para usufruir da beleza que lá se encontra. Ao notarmos a expressividade do adjectivo “linda”, notemos também como o poeta recupera para o campo poético a banalidade significtativa da palavra coisa, fazendo-a expressiva daquilo que é indefinível, do inefável, do que fica para lá do terraço, na região onde se gera a poesia.
Fernando Pessoa, como poeta genial, escrevia bem metido nesse mundo misterioso da poesia, livre do seu “enleio”, que aponta para a prisão que é o mundo sensível. Como é natural num texto de índole teórica, predominam os substantivos e os verbos, que se encontram no presente. De destacar a importância do verbo "ser" a significar existir na expressão "sério do que não é". "O que não é" é o mundo sensível e o que é, o mundo inteligível, one se move na elaboração dos seus poemas.
São importantes os substantivos coração e enleio (a contar com mundo sensível); e imaginação, coisa a conotar com o mundo intelígivel: “terraço” conota ao mesmo tempo com os dois, dado que estabelece a separação entre ambos. Há apenas três adjectivos cuja expressividade já comentamos atrás: linda, livre, sério.
Quanto à forma do poema, é usado o verso curto de seis sílabas, num poema de fundo pesado, onde é exposta uma teoria de criação poética. Para que o discurso lógico flua mais livremente é usado o transporte ou encavalgamento. O esquema rimático é igual nas três estrofes, apresenta rimas cruzadas e emparelhadas: ABABB. Há nas rimas variedade de sons predominando nas duas primeiras estrofes os sons nasais e fechados e alternando, na última, os fechados com os abertos, sugerindo, talvez o esclarecimento final do problema focado. São igualmente de salientar os vários casos de aliteração.
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