domingo, 8 de fevereiro de 2009

Caeiro, o Mestre

Alberto Caeiro “ heterónimo sem máscara”

( prof: Euclides Rosa)

Na introdução a Caeiro, Ricardo Reis afirma que os poemas de Caeiro são rigorosamente unificados por um pensamento filosófico. Nos poucos poemas analisados podemos descobrir alguns traços dessa unidade de pensamento, expressa nas seguintes aproximações metafóricas:
Primeira “ Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.”

Segunda: Pastor e guardador de rebanhos:
“ Sou um guardador de rebanhos”

Terceira: Rebanho e pensamentos:
“ O rebanho é os meus pensamentos...”
... olhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias,
Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho.”

Quarta: Pensamentos e sensações:
“ E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la”

A alma é pois identificada gradativamente com pastor, rebanhos, pensamentos, sensações, coisas.
Pode acaso passar no viso do monte uma diligência e saudar o pastor: “ Olá, guardador de rebanhos...” que a sua passagem nada modifica e “ a estrada não ficou mais bela, nem sequer mais feia”. Pastor habita o Vazio e não se prende a ideias, opiniões, sentimentos...” pastor do monte, tão longe de mim com as tuas ovelhas/ Na cidade a vida é mais pequena que aqui na minha casa no cimo deste outeiro./ Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave, escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o Céu/ tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar/ E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.
Caeiro não dá pela face oculta das coisas, vê apenas a realidade imediata e sensível. Torna-se coisa entre as coisas e vê como coisa sem esperança, desejos, beleza... A síntese da acomodação fá-lo feliz.
Caeiro, porém, não se diz categoricamente pastor: compara-se a um pastor. Por isso, ainda afloram sentimentos extra-sensações e extra-coisa: “ Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois/ Quem me dera que eu fosse o pó da estrada... Disso parece aperceber-se Caeiro, ao afirmar” Se às vezes digo que as flores sorriem/ E se eu disser que os rios cantam/ Não é que eu julgue que há sorrisos nas flores / E cantos no correr dos rios.../ É porque assim faço mais sentir aos homens falsos/ A existência verdadeiramente real das flores e dos rios./ Porque escrevo para eles me lerem, / Sacrifico-me ás vezes à sua estupidez de sentidos.../ Procuro dizer o que sinto/ sem pensar em que o sinto./ Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir./ O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado/ porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar”.
É a bem dizer, o regresso a Pessoa.
Não surpreende que lhe venha até a tentação de perguntar às coisas onde está o seu mistério, o seu lado oculto.
“O mistério das coisas? Sei lá o que é o mistério!”
“O mistério das coisas, onde está ele?
Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-se que é mistério?”
É evidente que quem se identifica com a flor, o rio, a árvore, o vento não pode nunca inquirir nada acerca de mistério algum.
“Que sabe o rio e que sabe a árvore
E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?”
Na verdade, sendo as coisas unicamente aquilo que parecem ser, nada há que compreender nelas. Isto é a negação absoluta da possibilidade de conhecer, de descobrir o porquê da realidade, “As coisas, segundo Caeiro, não têm significação, mas só existência.”

Por isto, os versos escritos a nenhuma ambiguidade ou conotação podem estar submetidos: são evidentes como as coisas. Como a flor não pode esconder a cor, nem árvore o fruto, assim o poeta da natureza deve ser nos seus versos. Caeiro, no dizer de Pessoa, é o místico da natureza.
Um misticismo muito diferente do praticado pelos místicos.
“Tu, místico, vês uma significação em todas as coisas.
Para ti tudo tem um sentido velado.
Há uma coisa oculta em cada coisa que vês.
O que vês, vê-lo sempre para veres outra coisa.
Para mim, graças a ter olhos só para ver,
Eu vejo ausência de significação em todas as coisas;
Vejo-o e amo-o, porque ser uma coisa é não significar nada.
Ser uma coisa é não ser susceptível de interpretação.”
“Se quiserem que eu tenha um misticismo, está bem, tenho-o:
Sou místico, mas só com o corpo.
A minha alma é simples e não pensa.
O meu misticismo é não querer saber.
É viver e não pensar nisso.”

Uma tragédia, entretanto, acontece a um tal pastor singular, que nega poder conhecer qualquer realidade, com a perda do cajado.
“Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
Sinto um cajado nas mãos...”
Não há pastor sem cajado ou vara para conduzir o rebanho. Ele é seu amor.
“O pastor amoroso perdeu o cajado,
E as ovelhas tresmalharam-se pela encosta,
E, de tanto pensar, nem tocou a flauta que trouxe para tocar.
Ninguém lhe apareceu ou desapareceu. Nunca mais encontrou o cajado.
Outros, praguejando contra ele, recolheram-lhe as ovelhas.
Ninguém o tinha amado afinal.”
Que simbolismo se atribuirá ao cajado? O cajado talvez possa querer sugerir a redução a uma coisa.
“Agora só me importa a luz da janela dele.
Apesar de a luz estar ali por ele a ter acendido,
A luz é a realidade imediata para mim.
Eu nunca passo para além da realidade imediata.
Para além da realidade imediata não há nada.”
Perdido o cajado, perdida foi a identidade com as coisas, a visão pura da realidade imediata.
O jogo cénico e o fingimento podem cessar. A janela aberta de uma solução para a paz de espírito fecha-se. As diligências circulam pelo outeiro, mas já não saudam o pastor.
“Todos os dias acordo com alegria e pena.
Antigamente acordava sem sensação nenhuma; acordava.
Tenho alegria e pena porque perco o que sonho
E posso estar na realidade onde está o que sonho.”

A biografia de Caeiro situa-se dentro dos limites naturais, fora de qualquer transcendência.
“Tenho só duas datas- a da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra coisa todos os dias são iguais.
Sou fácil de definir.
Vi como um danado.
Amei as coisas sem sentimentalidade nenhuma.
Nunca tive um desejo que não pudesse realizar, porque nunca ceguei.
Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um acompanhamento do ver.
Compreendi que as coisas são reais e todas diferentes umas das outras:
Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento.
Compreender isto com o pensamento seria achá-las todas iguais.
Um dia deu-me o sono como a qualquer criança.
Fechei os olhos e dormi.
Além disso, fui o único poeta da natureza.”

Olhos azuis, infantis e atentos, Caeiro passa o tempo a ver as coisas da natureza, com a visão das coisas. Pastor contemplativo, feliz de ser pastor-flor, pastor-vento, pastor-pedra, guarda os pensamentos, isto é, a paz que vem de não pensar como as coisas. Convenhamos que é uma tarefa dificílima.
Como se explica que, ignorante da vida e das letras (apenas uma instrução primária) Caeiro tenha chegado, sem brilhantes raciocínios metafísicos e filosofias, a um grau tão elevado de penetração num mundo que, por nós habitado, modificaria totalmente os comportamentos humanos? Só por uma intuição sobre-humana como aquelas que fundam religiões... Este homem descreveu o mundo sem pensar nele e criou um conceito de universo que não contém uma interpretação.”
Onde morre o pensamento (Caeiro tenta que os pensamentos não entrem no seu redil) nascem a intuição e os sentidos.”
“Eu não tenho filosofia; tenho sentidos!” Eu nem sequer sou poeta: vejo.”
Caeiro tenta transpôr a dualidade sujeito-objecto, fundindo-os.
“Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,
Mas um animal humano que a natureza produziu.”
Ainda assim, sou alguém.
Sou o Descobridor da natureza.
Sou o Argonauta das sensações verdadeiras.”

Caeiro revela-se, pois, numa perspectiva sensacionista, naturalista, objectiva e anti-metafísica. Finge ver apenas a realidade imediata e sensível, sem dar pelo oculto. Torna-se coisa entre as coisas.
Este problema já noutras eras lançou polémica com os “universais”.
Para uns era impossível compreender a realidade; para outros, nada mais se podia compreender além da realidade imediata.
Talvez por isso o poeta afirme:
“Uma vez chamaram-me poeta materialista,
E eu admirei-me, porque não julgava
Que se me pudesse chamar qualquer coisa.
Eu nem sequer sou poeta: vejo.”
Caeiro tenta identificar o sentir e o pensar. A metafísica é para ele uma doença do pensamento.

Caeiro, segundo Pessoa, é o objectivismo total e é o mestre. Nesta linha de objectivismo absoluto, Reis apresenta Caeiro como “argonauta das sensações verdadeiras, o grande libertador que nos restituiu, cantando, o nada luminoso que somos.”
Caeiro é ainda apelidado por Pessoa de místico puro, por recusar o pensamento e a reflexão, meios de apreensão do universo. “Sou místico, mas só com o corpo, afirma Caeiro.
Este misticismo recusa a metafísica, “a doença do pensamento”. De quatro canções que o renegam assegura Caeiro que foram escritas estando ele doente.
“Porque o único sentido oculto das coisas
É elas não terem sentido oculto nenhum.”
Ah!, os sentidos, os doentes que vêem e ouvem...”
Mas por que me interrogo, senão porque estou doente?
E assim o mestre atinge um grau de aceitação dos acontecimentos com uma paz eterna. Vê as coisas e aceita-as sem julgar que servirá de alguma coisa o criar ilusões para se julgar feliz.
Um homem assim como que purificado ou como que deus, nem sequer pode pensar em Deus:
“Pensar em Deus é desobedecer a Deus,
Porque Deus quis que o não conhecêssemos,
Por isso se nos não mostrou.”

Deste modo também o poeta, debruçado da janela ao entardecer, e “cujo olhar é nítido como o girassol”, escreve sem pensar, sem se sujeitar a regras de elaboração, tão naturalmente como tudo o que é natural e espontâneo.
“Ser poeta não é uma ambição minha,
É a minha maneira de estar sozinho.”
Escrever para o poeta pastor é tão natural como a árvore florir.
“Escrevi-os e devo mostrá-los a todos
Porque não posso fazer o contrário
Como a flor não pode esconder a cor,
Nem o rio esconder que corre,
Nem a árvore esconder que dá fruto.”
E ao lerem os meus versos pensem que sou qualquer coisa natural – por exemplo a árvore antiga...”
“Não me importo com as rimas. Raras vezes
Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra.
Penso e escrevo como as flores têm cor
Mas com menos perfeição no meu modo de exprimir-me
Porque me falta a simplicidade divina...
“Por mim escrevo a prosa dos meus versos
E fico contente.”
“E há poetas que são artistas
E trabalham nos seus versos/como um carpinteiro nas tábuas.”
Que triste não saber florir”
Ter que pôr verso sobre verso, como quem constrói um muro
E ver se está bem, e tirar se não está!...
A linguagem de Caeiro, “que se quer natural como o levantar do vento”, distingue-se pelo ritmo livre, alicerçado num sistema de repetições fónicas e semânticas constantes, na espontaneidade. Linguagem próxima da prosa, (prosa poética) volta-se para o elogio do real e objectivo e tenta inviabilizar a elaboração e o trabalho pensado.
Evidentemente que Caeiro todo é contradição. Se é pastor de pensamentos, como os nega? Como, se sabe da sua existência? Não são as suas ovelhas? A própria apreciação do real é subjectiva, particular, pessoal.
Caeiro mostra a propensão de Pessoa para a fantasia e metafísica.
Não passa dum metafísico, a desejar “passar como a ave sem deixar rasto...”
Para Pessoa, Caeiro é “um Pascoais virado do avesso”, porque o poeta do Marão é o poeta da natureza metafísica.
Em Caeiro há reminiscências de Cesário Verde.

Sem comentários: