domingo, 19 de abril de 2009

«Felizmente Há Luar!»- Estrutura, aspectos simbólicos

A. ESTRUTURA INTERNA (Acção)
Esta peça não se trata de uma obra que respeite a forma clássica nem obedeça à regra das três unidades (lugar, tempo e acção). A apresentação dos acontecimentos processa-se pela ordem natural e linear em que ocorrem, facilitando assim a sua compreensão.

ACTO I – Processo de incriminação; prisão dos incriminados:

Desenvolvimento da acção:
(Gomes Freire de Andrade encontra-se na sua casa “para os lados do Rato donde não há qualquer referência que tenha saído”.)

O primeiro núcleo de personagens do povo – de que fazem parte Manuel, Rita, Antigo Soldado e vários outros populares sem nome – vêem no general o seu herói, o único homem capaz de os libertar da opressão, da miséria e do terror em que vivem. (Manuel: “Se ele quisesse...”) O que significa que depositam nele as expectativas e esperanças no sentido de ser ele quem poderá libertá-los da tirania da regência e da exploração dos ingleses de que são alvo. Gomes Freire = herói

O segundo núcleo de personagens do povo – Vicente e os dois polícias – vão contribuir, através da denúncia, da traição e da força das armas, para a prisão de Gomes Freire de Andrade e para a sua ulterior execução. Gomes Freire = objecto de denúncia

Vicente num 1º momento: Vicente tem um papel de provocador, tentando denegrir junto do povo a imagem de Gomes Freire: “cá vou discutindo o general de manhã à tarde e à noite... Para esta cambada o Freire é Deus”, o que revela que Vicente despreza o povo (classe de que é, aliás, oriundo) ao mesmo tempo que desrespeita o general.

Vicente num 2º momento: Vicente tem um papel de denunciante ao aludir ao general como presumível chefe da conjura.

Vicente num 3º momento: Vicente é incumbido, por D. Miguel, de vigiar a casa de Freire de Andrade, o que ele cumpre de forma eficiente: “entram mais de dez pessoas na casa que fui incumbido de vigiar”

Núcleo dos Governadores  D. Miguel e Principal Sousa mostram-se preocupados com as mudanças que a Revolução Francesa tem vindo a introduzir no espírito de um número crescente de portugueses. Beresford está preocupado com a conspiração de que tanto se fala em Lisboa, mostra a necessidade de actuar sem demora e com dureza. Gomes Freire = perigo para o poder instituído

Morais Sarmento e Andrade Corvo  os oficiais, companheiros de Gomes Freire, que, por vantagens económicas aceitam denunciá-lo. Gomes Freire = objecto de denúncia
ACTO II – Processo de ilibação dos incriminados, punição dos incriminados

Desenvolvimento da acção:

A acção centra-se na deambulação de Matilde.
. suplica a Beresford que liberte o marido, apercebendo-se da conveniência política da prisão do seu marido;
. intimida o povo à acção no sentido de lutar contra a opressão e pela libertação do marido;
. exige ao povo que se solidarize com ela;
. dirige-se a D. Miguel e sente o ultraje deste, primo do marido;
. dirige-se ao Principal Sousa a quem acusa de hipócrita e prepotente;
. sente o reconforto e a compreensão de Frei Diogo que acabara de confessar o general preso em S. Julião da Barra;
. chega à serra de Santo António acompanhada de Sousa Falcão onde a fogueira queima o corpo de Gomes Freire;
. reconhece, na parte final, que a morte do General não foi gratuita e nota-se nela um sinal de esperança e de optimismo.

B. TEMPO

Tempo da acção: Aparentemente, no mesmo dia em que os populares conversam sobre Gomes Freire, Vicente é incumbido por D. Miguel de o vigiar. Também nesse mesmo dia, os Governadores recebem os oficiais delatores. Posteriormente, Vicente traz a informação de que «Ontem à noite entraram mais de dez pessoas em casa de…(Gomes Freire)». Não sabemos, contudo, o tempo que decorre entre a situação inicial e este “ontem”, ou seja, há quantos dias dura a vigilância à casa de Gomes Freire. É impossível determinar o tempo que decorre desde a denúncia até declarem Gomes Freire chefe da conjura e consequente prisão e condenação à morte.
No Acto II, Matilde desabafa: «Há quatro dias que não me deito…» e Sousa Falcão anuncia que os presos vão a caminho da execução. É-nos assim transmitida a ideia de que, entre a prisão dos conjurados e a sua execução, decorreram apenas quatro dias. O objectivo será evidenciar a arbitrariedade do Poder: quatro dias para recolher provas e proceder a um julgamento isento é um período de tempo ridículo.
Ficamos com a impressão de que tudo se passa num período curtíssimo de tempo. Esta concentração de tempo é escandalosa, evidenciando que o Poder não esperava senão um pretexto para eliminar um adversário que tinha prestígio suficiente para pôr em risco o poder instituído.

Tempo histórico: “Esta praga lhe rogo eu, Matilde de Melo, mulher de Gomes Freire de Andrade, hoje 18 de Outubro de 1817”

B. ESPAÇO

O espaço e o tempo de duração de “história” aparecem muito difusos. São as didascálicas e as falas das personagens que facultam algumas referências ao espaço.

Espaço físico

A acção decorre em Lisboa em três espaços principais:
. a sede da regência (zona da Baixa);
. a casa do general (zona do Rato);
. a serra de Santo António, lugar de onde é visível o forte de S. Julião da Barra.

Há porém referência a outros lugares:
. ao Campo de Sant’Ana;
. a uma rua de um bairro da zona ribeirinha;
. à porta da Sé onde os populares mendigam.

Espaço físico / Espaço psicológico

.além das didascálias e das falas das personagens, o autor usa a iluminação para marcar a mudança de espaço e os estados emocionais das personagens, num…
…Jogo de luz / sombra:
. mudança de espaço
. criar um ambiente de desalento, de sonho…
. código complementar do valor simbólico das palavras proferidas.

Espaço social (vestuários, adereços, etc…)


C. UNIDADE DA PEÇA

A unidade da peça é dada pela figura de Gomes Freire, pretenso chefe de uma conspiração contra o poder instituído em Portugal. Como anuncia o próprio autor no quadro de apresentação das personagens, Gomes Freire embora nunca apareça em cena, está sempre presente.
No início da peça, o General é tema de conversa entre os Populares e é posto sob vigilância por ordem de D. Miguel. No decurso do Acto I, os regentes do reino, sem o explicarem, mostram-se ansiosos por ter algum indício que lhes permita acusar Gomes Freire de chefe da conjura. O acto termina com a ordem de prisão de Gomes Freire, acusado de chefe dos conspiradores, ainda que não haja provas de que o seja.
Todo o Acto II se centra em torno da luta de Matilde, companheira do general, pela defesa da sua vida. Luta sem êxito, já que a obra acaba com a execução de Gomes Freire.

D. O TÍTULO

D. Miguel comenta «É verdade que a execução se prolongará pela noite, mas felizmente há luar…» quando a execução dos conjurados vai começar. Espera que assim, apesar da noite, todos tenham oportunidade de ver bem o que acontece a quem ousa desafiar as forças do poder. (Poder)
As últimas palavras da peça pertencem a Matilde que, depois da execução, diz para o povo: «Olhem bem! Limpem os olhos no clarão daquela fogueira e abram as almas ao que elas nos ensina! / Até a noite foi feita para que vísseis até ao fim… / Felizmente  Felizmente há luar!» (nem “quase grito”). A intenção é a de que todos vejam bem ao que estão sujeitos quando se opõem ao poder. Mas enquanto D. Miguel pretende manter, através do terror, o poder opressivo e incontestável, Matilde pretende que as consciências se agitem e, vencendo o medo, lutem pela liberdade. (Anti-Poder)


E. DIDASCÁLIAS

As didascálias (ou indicações cénicas) são texto secundário que serve de suporte ao texto dramático (fala de personagens).
As didascálias que encontramos entre parênteses dão-nos indicações sobre a expressão corporal da personagem, os seus sentimentos e emoções, o seu movimento em palco, a entrada e saída. Também indicam os destinatários dos actos de fala, o tom de voz, as mudanças de luz, o som.
As didascálias laterais acompanham as palavras das personagens e ajudam à sua caracterização, esclarecendo a forma com é falam, revelando as intenções do que está a ser dito, para que as palavras sejam bem interpretadas (sobretudo pelo leitor).


F. ELEMENTOS SIMBÓLICOS

Os tambores  É ao som dos tambores em fanfarra e crescendo de intensidade que a peça termina. Os tambores, que amedrontam os populares mal os ouvem à distância, e que tocam em fanfarra em momentos decisivos, como o anúncio da prisão e o fim da execução de Gomes Freire, representam a repressão; é o som simbólico da opressão aterrorizadora.

A moeda de cinco reis  Na primeira situação representa a esmola, o auxílio humilhante que os poderosos dão, com arrogância e desprezo, aos que nada têm. Por isso Manuel, numa atitude de revolta, a manda dar a Matilde, mas logo se arrepende, pois sabe que não é ela que merece este gesto de agressão. Por outro lado, Matilde ao pedir-lha está a assumir a sua culpa por não ter compreendido a real situação dos populares.
Quando Matilde atira a moeda aos pés do Principal Sousa esta passa a símbolo da traição da Igreja, o eco das moedas que Judas recebeu pela entrega de Cristo. Também o Principal Sousa traiu os valores cristãos pelo poder.

A sai verde  Oferecida a Matilde pelo seu amado, em Paris, para vestir quando voltassem a Portugal, nunca tinha sido usada, talvez porque o país nunca lhe tivesse dado motivos de esperança. É a saia que ela planeia usar quando Gomes Freire voltar para casa (atitude reveladora de que se recusa a perder a esperança). Acaba por ser a que veste no momento da execução do marido, simbolizando a esperança no futuro.

A fogueira e o clarão  a fogueira destruiu Gomes Freire e a conspiração, a hipótese de mudança. Mas foi uma destruição necessária para a purificação; para que todo o horror fosse exposto e reforçasse o desejo de lutar por um Portugal melhor. Este valor redentor e purificador do fogo converte o final de morte num final de esperança. O clarão é a luz da liberdade que se anuncia. O clarão que se extingue com a morte de Gomes Freire irá iluminar muitas consciências. A sua morte não será em vão, outros manterão viva e cada vez mais forte a chama da liberdade que iluminou o General.

O luar  Para D. Miguel, a luz do luar simboliza a opressão necessária para manter o país submisso. Para Matilde, simboliza o início do fim do obscurantismo em que o país está mergulhado. É a luz que permite “ver” um exemplo e um caminho a seguir.

1 comentário:

Henrique Santos disse...

Uma excelente ajuda para concluir o meu estudo sobre esta peça! Eu estava mesmo à procura dos núcleos da acção, ainda bem que os encontrei.

Muito obrigado :)