Álvaro de Campos- Futurista
Contextualização da Fase Futurista no percurso poético do heterónimo:
Segundo Jacinto Prado Coelho, e é de consenso quase geral, a poesia d Campos deenvolve-se em três fases:
- a do Opiário (ilustrado com um poema sob esse título, datado ficticiamente de Março de 1914;
- a do Futurismo Whitmaniano ( documentado na Ode Triunfal (Abril de 1914), Dois excertos de Odes (30 de Junho de 1914), Ode Marítima( Publicada no nº 2 de Orpheu em 1915), Saudação a Walt Whitman ( 11 de Junho de 1915), Passagem das Horas (22 de Maio de 1916);
- a fase pessoal, também conhecida por intimista, onde se verifica o retorno a Pessoa Ortónimo, pelo refúgio na infância, como forma de resolver o tédio, e a abulia.
A segunda fase do Futurismo Whitmaniano:
Campos recebe influências do Futurismo de Marinetti e do Sensacionismo De Walt Whitman.
Manifesto Futurista de Marinetti (11 de Março de 1912):
• Deve destruir-se o eu na literatura, isto é, deve abolir-se toda a psicologia (...) substituindo-a pela matéria (...) com os seus impulsos directivos, a sua força de compressão, de dilatação, de coesão e de desagregação, a sua composição molecular ou as suas turbinas de electrões (...) O calor de um pedaço de ferro ou de madeira, é muito mais apaixonante, para nós, que o sorriso ou as lágrimas de uma mulher. Queremos na literatura a vida do motor, novo animal instintivo do qual conheceremos o instinto geral, depois de conhecermos os instintos das diversas forças que o compõem (...) É necessário sentir o peso e o odor dos objectos, coisa que nunca se fez na literatura, ouvindo os motores e reproduzindo os seus especialíssimos discursos inumanos.
• (...) Há necessidade de orquestrar as imagens, dispondo-as segundo um máximo de desordem;
• (...) Deve haver uma gradação de analogia cada vez mais vasta, estabelecendo relações tanto mais profundas e sólidas, quanto mais distantes. A analogia nada mais é do que o amor profundo que liga as coisas distantes, aparentemente diversas e hostis. Quando, na minha Battaglia di Tripoli, comparei uma trincheira hirta de baionetas a uma orquestra, uma metralhadora a uma mulher fatal, introduzi, intuitivamente, uma grande parte do Universo num breve episódio de batalha africana. As imagens não são flores para semear e colher com parcimónia, como dizia Voltaire. Elas constituem o próprio sangue da poesia. A poesia deve ser sequência ininterrupta de imagens novas, sem o que será pura anemia (...) É necessário, portanto, abolir na língua o que ela contenha de imagens estereotipadas, de metáforas desbotadas; isto é, quase tudo.
• Necessidade de libertação da sintaxe, dispondo os substantivos ao acaso, de forma espontânea;
• Deve usar-se o verbo no infinitivo, para que se adapte elasticamente ao substantivo e não se sobreponha ao eu do escritor que observa ou imagina (...);
• Deve abolir-se o adjectivo, para que o substantivo nu conserve o seu valor essencial (...);
• Deve abolir-se o advérbio (...) para evitar que ele dê à frase uma fastidiosa unidade de tom;
• Todo o substantivo deve ter o seu duplo, isto é, o substantivo deve ser seguido, sem conjunção, do substantivo a que está ligado por analogia (...);
O Futurismo em Portugal foi um escândalo sociológico. Os jovens futuristas ( Pessoa, Almada Negreiros, Santa-Rita Pintor, entre outros, foram apelidados de “ malucos”, “loucos” mas era isso que eles próprios queriam, “ dar uma bofetada no gosto do público(famoso poema de maiakovski), rompendo definitivamente com hábitos culturais esclerosados e retrógrados.
“ Um automóvel é mais belo que a Vitória de Samotrácia
Elogio da civilização industrial e da técnica
Ruptura com o subjectivismo da lírica tradicional
Atitude escandalosa: transgressão da moral estabelecida
Sensacionismo Whitmaniano:
• A única realidade na vida é a sensação. A única realidade em arte é a consciência da sensação.
• Não há Filosofia, Ética ou Estética, mesmo na arte, onde existem apenas sensações.
• Pujança da sensação intelectual, emocional e física
Vivência em excesso das sensações (“Sentir tudo de todas as maneiras” – afastamento de Caeiro)
Sadismo e masoquismo
Cantor lúcido do mundo moderno
Do sensacionismo (de Walt Whitman), Campos adoptou, para além do verso livre, um estilo esfuziante, torrencial, espraiado em longos versos de duas ou três linhas, anafórico, exclamativo, interjectivo, monótono pela simplicidade dos processos, pela reiteração de apóstrofes e enumerações, mas vivificado pela fantasia verbal duradoura e inesgotável.
ODE TRIUNFAL(excerto)
À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.
Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com o que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!
Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical –
Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força –
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro.
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,
Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.
Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Ode marítima(excerto)
Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
Olho prò lado da barra, olho prò Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos detrás dos navios que estão no porto.
(...)
Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente.
(...)
Ó fugas contínuas, idas, ebriedade do Diverso!
Alma eterna dos navegadores e das navegações!
Cascos reflectidos devagar nas águas,
Quando o navio larga do porto!
Flutuar como alma da vida, partir como voz,
Viver o momento tremulamente sobre águas eternas.
Acordar para dias mais directos que os dias da Europa.
Ver portos misteriosos sobre a solidão do mar,
Virar cabos longínquos para súbitas vastas paisagens
Por inumeráveis encostas atónitas...
(...)
E vós, ó coisas navais, meus velhos brinquedos de sonho!
Componde fora de mim a minha vida interior!
Quilhas, mastros e velas, rodas do leme, cordagens,
Chaminés de vapores, hélices, gáveas, flâmulas,
Galdropes, escotilhas, caldeiras, colectores, válvulas;
Caí, por mim dentro em montão, em monte,
Como o conteúdo confuso de uma gaveta despejada no chão!
Sede vós o tesouro da minha avareza febril,
Sede vós os frutos da árvore da minha imaginação,
Tema de cantos meus, sangue nas veias da minha inteligência,
Vosso seja o laço que me une ao exterior pela estética,
Fornecei-me metáforas imagens, literatura,
Porque em real verdade, a sério, literalmente,
Minhas sensações são um barco de quilha prò ar,
Minha imaginação uma âncora meio submersa,
Minha ânsia um remo partido,
E a tessitura dos meus nervos uma rede a secar na praia!
Saudação a Walt Whitman
Meu velho Walt, meu grande Camarada, evohé!
Pertenço à tua orgia báquica de sensações-em-liberdade,
Sou dos teus, desde a sensação dos meus pés até à náusea em meus sonhos,
Sou dos teus, olha pra mim, de aí desde Deus vês-me ao contrário:
De dentro para fora... Meu corpo é o que adivinhas, vês a minha alma —
Essa vês tu propriamente e através dos olhos dela o meu corpo —
Olha pra mim: tu sabes que eu, Álvaro de Campos, engenheiro, Poeta sensacionista,
Não sou teu discípulo, não sou teu amigo, não sou teu cantor,
Tu sabes que eu sou Tu e estás contente com isso!
Nunca posso ler os teus versos a fio... Há ali sentir demais...
Atravesso os teus versos como a uma multidão aos encontrões a mim,
E cheira-me a suor, a óleos, a actividade humana e mecânica.
Nos teus versos, a certa altura não sei se leio ou se vivo,
Não sei se o meu lugar real é no mundo ou nos teus versos,
Não sei se estou aqui, de pé sobre a terra natural,
Ou de cabeça pra baixo, pendurado numa espécie de estabelecimento,
No tecto natural da tua inspiração de tropel,
No centro do tecto da tua intensidade inacessível.
Abram-me todas as portas!
Por força que hei de passar!
Minha senha? Walt Whitman!
Mas não dou senha nenhuma...
Passo sem explicações...
Se for preciso meto dentro as portas...
Sim — eu, franzino e civilizado, meto dentro as portas,
Porque neste momento não sou franzino nem civilizado,
Sou EU, um universo pensante de carne e osso, querendo passar,
E que há de passar por força, porque quando quero passar sou Deus!
Tirem esse lixo da minha frente!
Metam-me em gavetas essas emoções!
Daqui pra fora, políticos, literatos,
Comerciantes pacatos, polícia, meretrizes, souteneurs,
Tudo isso é a letra que mata, não o espírito que dá a vida.
O espírito que dá a vida neste momento sou EU!
Que nenhum filho da... se me atravesse no caminho!
O meu caminho é pelo infinito fora até chegar ao fim!
Se sou capaz de chegar ao fim ou não, não é contigo,
E comigo, com Deus, com o sentido-eu da palavra Infinito...
Pra frente!
Meto esporas!
Sinto as esporas, sou o próprio cavalo em que monto,
Porque eu, por minha vontade de me consubstanciar com Deus,
Posso ser tudo, ou posso ser nada, ou qualquer coisa,
Passagem das Horas
Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.
(...)
Seja o que for, era melhor não ter nascido,
Porque, de tão interessante que é a todos os momentos,
A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,
A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair
Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas,
E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos,
Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs,
E tudo isto devia ser qualquer outra coisa mais parecida com o que eu penso,
Com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ó vida.
Cruzo os braços sobre a mesa, ponho a cabeça sobre os braços,
É preciso querer chorar, mas não sei ir buscar as lágrimas...
Por mais que me esforce por ter uma grande pena de mim, não choro,
Tenho a alma rachada sob o indicador curvo que lhe toca...
Que há de ser de mim? Que há de ser de mim?
(...)
Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.
(...)
Sentir tudo de todas as maneiras,
Ter todas as opiniões,
Ser sincero contradizendo-se a cada minuto,
Desagradar a si próprio pela plena liberalidade de espírito,
E amar as coisas como Deus.
(...)
Dói-me a imaginação não sei como, mas é ela que dói,
Declina dentro de mim o sol no alto do céu.
Começa a tender a entardecer no azul e nos meus nervos.
Vamos ó cavalgada, quem mais me consegues tornar?
Eu que, veloz, voraz, comilão da energia abstrata,
Queria comer, beber, esfolar e arranhar o mundo,
Eu, que só me contentaria com calcar o universo aos pés,
Calcar, calcar, calcar até não sentir.
Eu, sinto que ficou fora do que imaginei tudo o que quis,
Que embora eu quisesse tudo, tudo me faltou.
Cavalgada desmantelada por cima de todos os cimos,
Cavalgada desarticulada por baixo de todos os poços,
Cavalgada vôo, cavalgada seta, cavalgada pensamento-relâmpago,
Cavalgada eu, cavalgada eu, cavalgada o universo — eu.
Helahoho-o-o-o-o-o-o-o ...
Meu ser elástico, mola, agulha, trepidação ...
Dois Excertos de Odes
(...)
Vem, Noite antiquíssima e idêntica,
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio, Noite
Com as estrelas lentejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito.
(...)
Nossa Senhora
Das coisas impossíveis que procuramos em vão,
Dos sonhos que vêm ter conosco ao crepúsculo, à janela,
Dos propósitos que nos acariciam
Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas
Ao som europeu das músicas e das vozes longe e perto,
E que doem por sabermos que nunca os realizaremos...
Vem, e embala-nos,
Vem e afaga-nos.
Beija-nos silenciosamente na fronte,
Tão levemente na fronte que não saibamos que nos beijam
Senão por uma diferença na alma.
E um vago soluço partindo melodiosamente
Do antiquíssimo de nós
Onde têm raiz todas essas árvores de maravilha
Cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos
Porque os sabemos fora de relação com o que há na vida.
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Síntese
celebra o triunfo da máquina, da energia mecânica e da civilização moderna
- apresenta a beleza dos “maquinismos em fúria” e da força da máquina
- exalta o progresso técnico, a velocidade e a força
- procura da chave do ser e da inteligência do mundo torna-se desesperante
- canta a civilização industrial
- recusa as verdades definitivas
- estilisticamente: introduz na linguagem poética a terminologia do mundo mecânico citadino e cosmopolita
- intelectualização das sensações
- a sensação é tudo
- procura a totalização das sensações: sente a complexidade e a dinâmica da vida moderna e, por isso, procura sentir a violência e a força de todas as sensações – “sentir tudo de todas as maneiras”
- cativo dos sentidos, procura dar largas às possibilidades sensoriais ou tenta reprimir, por temor, a manifestação de um lado feminino
- tenta integrar e unificar tudo o que tem ou teve existência ou possibilidade de existir
- exprime a energia ou a força que se manifesta na vida
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